A SÚMULA VINCULANTE Nº 21 DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
E O AMPLO DIREITO DE DEFESA NO TRÂNSITO
Julyver Modesto de
Araujo
Em 27/11/09, o Supremo Tribunal
Federal publicou a Súmula vinculante nº 21/09, esposando o entendimento de que “É
inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévio de dinheiro ou
bens para admissibilidade de recurso administrativo”. Entre outras áreas do
Direito, tal posição jurisprudencial afeta também o direito de defesa no
trânsito, tendo em vista o disposto no artigo 288, § 2º, do Código de Trânsito
Brasileiro, que versa sobre o recurso em segunda instância: “No caso de
penalidade de multa, o recurso interposto pelo responsável pela infração
somente será admitido comprovado o recolhimento de seu valor”.
Isto significa que, embora não tenha sido
declarado formalmente inconstitucional, já que não foi promovida Ação Direta de
Inconstitucionalidade contra o dispositivo legal mencionado, sua eficácia
restou prejudicada e, portanto, não se pode mais exigir o pagamento da multa de
trânsito, para a apresentação de recursos em segunda instância (ao CONTRAN,
CETRAN, CONTRANDIFE ou Colegiado especial, nos termos do artigo 289 do CTB).
O DENATRAN, inclusive, foi interpelado pelo Ministério público de Minas Gerais,
no sentido de divulgar a Súmula aos órgãos de trânsito, ao que solicitou
posicionamento da Consultoria Jurídica do Ministério das Cidades, resultando em
Parecer conclusivo sobre a aplicabilidade do entendimento do STF aos recursos contra
a penalidade de multa, o que foi objeto de divulgação aos órgãos do Sistema
Nacional de Trânsito, por meio de Ofício circular datado de fevereiro de 2010.
É de se imaginar, com esta posição inovadora, um aumento no número de recursos
em 2ª instância, diante do que nos cabe questionar se a decisão é ou não
acertada. Antes, porém, de abordar a questão do amplo direito de defesa no
trânsito e os consequentes efeitos advindos desta mudança, considero importante
esclarecer aos leitores alheios ao universo jurídico o significado da expressão
“súmula vinculante” e, de forma associada, o papel desempenhado pelo Supremo
Tribunal Federal, o que tomarei a liberdade de fazer de maneira simples e
didática, deixando de lado, propositalmente (e na medida do possível), o rigor
metodológico que se esperaria de um trabalho mais acadêmico, voltado aos nobres
causídicos e demais operadores do Direito.
Adotemos, destarte, para compreensão do fenômeno que se pretende explicar, duas
premissas básicas: 1ª. a tripartição de Poderes, como forma de atuação do
Governo; e 2ª. a posição privilegiada da Constituição Federal, na ordem
normativa interna. Estes são temas de grande relevância, para que se possa
entender a intromissão do Poder Judiciário, em determinar que não se deve
cumprir um dispositivo que tenha sido devidamente incorporado na lei votada e
aprovada por nossos representantes (como leitura complementar, sugiro dois
artigos de minha autoria, disponíveis em www.ceatt.com.br: “O Sistema Nacional de Trânsito e a Teoria
da separação dos poderes” e “Legislação de trânsito – competências e
incompetências”).
De maneira bem simples, podemos dizer que, se de um lado, “são Poderes da
União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário” (artigo 2º da Constituição Federal), de outro, há a necessidade
de constante controle mútuo. A idéia é que o Poder Legislativo, formado por
representantes do povo, determine as regras de convivência social, por meio da
elaboração das leis, as quais devem ser fielmente cumpridas pelo Poder
Executivo, restando reservada ao Judiciário a incumbência de dirimir os
litígios eventualmente ocorridos e, desta forma, dizer o direito (aliás, este é
justamente o significado da palavra “jurisdição”, cuja origem latina uniu os
termos “juris" – direito e “dicere” – dizer).
Para atuação legislativa, todavia, há que se considerar a 2ª premissa
retro-mencionada, qual seja, a primazia constitucional na elaboração de
diplomas legais, já que cabe à Constituição Federal, como lei máxima de cada
país, instituir as regras gerais de sua existência, desde o funcionamento dos
poderes devidamente constituídos, até os direitos e garantias de seus cidadãos,
regras estas que, por serem basilares, não podem ser contrariadas por normas
infraconstitucionais, sob pena de estas serem consideradas nulas. Esta ordem
normativa hierárquica é muito bem representada pelo jurista alemão Hans Kelsen,
por meio de uma pirâmide legislativa, em cujo ápice encontra-se a Constituição
e da qual decorrem todas as outras leis e atos normativos.
E como proceder, portanto, frente a leis que contrariam dispositivos
constitucionais? É propriamente aqui que se encontra uma das atribuições do
Poder Judiciário, no exercício do controle jurisdicional das leis. Esta
combinação das duas premissas ora discorridas é que nos permite compreender a
edição da Súmula vinculante nº 21 e o consequente reconhecimento da inconstitucionalidade
do artigo 288, § 2º do CTB.
O artigo 102 da Constituição Federal, ao tratar do Supremo Tribunal Federal,
estabelece sua precípua competência de guarda da Constituição. Além da
atribuição específica de processar e julgar as Ações Diretas de
Inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (artigo 102,
I, a, da CF), o Supremo costuma expedir Súmulas, que nada mais são (na área de
conhecimento que nos interessa) do que a expressão de um entendimento firmado
nos Tribunais, acerca de um determinado fato jurídico, decorrente de
julgamentos semelhantes em reiterados casos. Apesar das Súmulas representarem a
jurisprudência do órgão jurisdicional e, portanto, também constituírem fonte do
Direito, há uma corrente discussão sobre a vinculação ou não de futuras
decisões judiciais, frente à liberdade de convicção do juiz.
Foi este cenário de vulnerabilidade de exigência do cumprimento das Súmulas,
que ocasionou a inclusão na Constituição Federal, pela Emenda Constitucional nº
45/04, do artigo 103-A, regulamentado pela Lei nº 11.417/06 e segundo o qual “O
Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão
de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria
constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa
oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma
estabelecida em lei.
Deste modo, ainda que
se defenda o entendimento de que as Súmulas nada mais são do que uma orientação
colegiada, como se a sua aplicação fosse facultativa, a simples leitura do
texto constitucional nos demonstra que esta espécie de “Super Súmula” surgiu
exatamente com a finalidade de exigir-lhe cumprimento e, por isto, o nome de
Súmula VINCULANTE (reconheço, aos leitores mais atentos ao tema, que o assunto
comporta discussão mais ampla e não é tão consensual assim, mas creio que a
explicação dada, retirando-se ao debate doutrinário, satisfaz nosso intento).
A Súmula vinculante (privativa do STF) é mecanismo, portanto, não apenas de
consolidação das decisões, mas até mesmo de desobstrução do Poder Judiciário,
com a diminuição dos processos judiciais que discutam o controle de
constitucionalidade das leis, partindo-se do pressuposto do cumprimento do seu
teor pelos órgãos estatais e de padronização do entendimento a ser adotado para
litígios vindouros.
Feitas essas considerações gerais, resta esclarecer o motivo pelo qual foi
editada a Súmula vinculante nº 21 ou, em outras palavras, quais são as
garantias constitucionais ofendidas por qualquer dispositivo legal que exija o
depósito prévio de bens ou dinheiro para a interposição de recurso
administrativo.
Basicamente, destacam-se dois itens do artigo 5º da Constituição Federal, que
dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais: os incisos LIV e LV.
No inciso LIV, encontramos o seguinte teor: “ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A expressão “devido
processo legal”, importada para o ordenamento pátrio, do direito
norte-americano, deriva do termo correspondente “due process of law”,
utilizada, pela primeira vez, em 1354, na Inglaterra, no reinado de Eduardo
III. Sua origem, porém, é datada do século anterior, quando fora utilizada a
expressão “law of the land”, pelo rei “João sem terra”, que se viu
obrigado a assinar uma declaração de direitos segundo a qual nenhum cidadão
inglês teria sua liberdade e propriedade aviltadas, sem que houvesse um
correspondente processo, de acordo com a lei da terra.
O princípio do devido processo legal, como se vê de origem remota, tem o condão
de proteger os dois bens historicamente mais caros à sociedade: a liberdade e a
propriedade. De forma sucinta, podemos dizer que se destina a assegurar os
direitos inerentes à existência humana, evitando-se o desvio de poder e
garantindo-se a lisura na aplicação de penas pelo Estado.
Assim, quando alguém tem contra si aplicada uma multa de trânsito e, desta
forma, ofendido o seu direito de propriedade sobre o veículo automotor, há a
necessidade de que o processo legal tenha sido devidamente obedecido pelo órgão
repressor, garantindo-se o direito daquele que está sendo punido.
De maneira consentânea, o inciso LV dispõe
que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes”. A inovação desta norma, em comparação com a
disposição que se encontrava na Constituição anterior, reside na sua
abrangência também aos processos administrativos, posto que, antes da CF/88, o
direito ao contraditório e ampla defesa restringia-se apenas aos acusados,
expressão que denotava sua aplicabilidade apenas aos que se encontravam sob a
tutela penal do Estado (pelo cometimento de crimes). Com a mudança na redação
deste direito, eliminou-se a idéia da “verdade sabida”, que permitia à
Administração a punição quase sumária, seja dos seus servidores (no exercício
do poder disciplinar), seja dos administrados (no exercício do poder de
polícia, que engloba o chamado poder de polícia administrativa de trânsito).
Admitida esta amplitude do exercício de ampla defesa às multas de trânsito, de
que ora tratamos, como aceitar a obrigatoriedade do pagamento da penalidade,
para a interposição do recurso? Tal exigência não seria um óbice para o
exercício pleno do direito de defesa junto às instâncias recursais previstas na
legislação de trânsito? Afinal, trata-se, obviamente, daquilo que se pretende
evitar quando se recorre, ou seja, o recorrente objetiva, com seu pedido de
cancelamento da multa, que não seja exatamente obrigado a pagá-la.
Ainda que o Código de Trânsito estabelecesse esta obrigatoriedade somente nos
recursos de 2ª instância, não afetando o primeiro recurso, junto à JARI (artigo
285 do CTB) e mesmo considerando que, desde 15/07/04, o interessado passou a
ter mais um momento para se manifestar contra a infração que lhe é imputada,
antes mesmo da imposição da multa, tendo em vista a DEFESA DA AUTUAÇÃO prevista
no artigo 3º, § 2º, da Resolução do CONTRAN nº 149/03, o fato é que não há
AMPLA DEFESA quando obstáculos são criados para seu exercício.
Importante registrar que, em
alguns Estados, já havia até manifestação do Conselho
Estadual de Trânsito, órgão julgador de segunda instância, no sentido de
ignorar a comprovação do pagamento da multa, como condição de admissibilidade
recursal. Cite-se, como ótimo exemplo de intervenção positiva na garantia dos
direitos individuais, o CETRAN de Santa Catarina, que, por meio do Parecer nº
75/08, de 09/09/08, concluiu pela inconstitucionalidade do artigo 288, § 2º, do
CTB, deixando, desde então, de exigir o cumprimento da norma em apreço. De maneira mais
específica e limitada, o CETRAN de São Paulo adotara o procedimento de que “o
Coordenador da JARI ou seu substituto legal poderá por despacho, ‘ad
referendum’ do Conselho, autorizar a remessa do recurso sem o recolhimento da
multa, quando as provas oferecidas demonstrarem claramente que ocorreu erro de
julgamento em primeira instância ou qualquer outro motivo relevante que
propiciará o acolhimento do recurso” (item 29 da Deliberação nº 01/04).
Diante de todo o exposto, pretendeu o STF, com
a Súmula vinculante nº 21/09, garantir os direitos constitucionais aqui
versados, condenando os dispositivos normativos que criam obstáculos para a
ampla defesa, como é o caso do (agora inconstitucional) artigo 288, § 2º do
CTB. A aplicabilidade desta Súmula ao recurso de trânsito foi, inclusive,
mencionada no voto da Ministra Carmen Lucia (o
texto integral da votação da Súmula pode ser obtido em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/PSV_21.pdf).
Não se trata,
obviamente, de querer ampliar facilidades para aqueles que são multados.
Ademais, sou da opinião, reforçada por anos de dedicação à fiscalização de
trânsito, de que a multa deve realmente ser aplicada aos transgressores da lei,
pois, apesar de obviamente indesejada por aqueles que a recebem, é extremamente
necessária à mudança de comportamento. Todavia, todo motorista tem o direito
de ser multado corretamente e, ainda que seja culpado pela infração de que
é acusado, deve ter o seu direito de defesa garantido por lei e assegurado
efetivamente pelo Estado, pois o exercício do jus puniendi estatal
(direito de punir) não deve confundir o rigor na aplicação da lei com o
arbítrio de uma punição, a todo custo, pelo simples ato de punir.
A punição deve ser,
acima de tudo, uma ferramenta de mudança das condutas que se deseja expurgar da
vida em sociedade. E,
neste ponto, a Súmula vinculante nº 21/09 do STF não deve ser vista como um
salvo conduto para maus motoristas, mas como uma ótima demonstração de atuação
do Poder Judiciário no respeito aos direitos sociais que tanto prezamos.
São Paulo, 24 de março
de 2010.
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