ESCLARECIMENTOS SOBRE
A SUBSTITUIÇÃO DE MULTA POR ADVERTÊNCIA
Julyver Modesto de
Araujo
Tenho recebido,
constantemente, questionamento sobre a veracidade de uma mensagem que circula
atualmente pela internet, com os seguintes dizeres:
No caso de multa por
infração leve ou média, se você não foi multado pelo mesmo motivo
nos últimos 12 meses, não precisa pagar multa.
É só ir ao DETRAN e
pedir o formulário para converter a infração em advertência com base no Art.
267 do CTB. Levar Xerox da carteira de motorista e a notificação da multa. Em
30 dias você recebe pelo correio a advertência por escrito. Perde os pontos,
mas não paga nada.
Presumo que a “dica” tenha sido redigida por alguém que resida em Estado da
Federação em que a prática seja automática desse jeito, o que, todavia, não
ocorre em todos os órgãos e entidades executivos de trânsito e rodoviários. Em
vários Estados e Municípios, não há sistemática semelhante, ao que nos cabe
questionar se o atendimento ao disposto no artigo 267 é ou não obrigatório.
Vejamos, inicialmente, o que dispõe o Código de Trânsito Brasileiro, em seu
artigo 267:
Art. 267 - Poderá ser imposta a penalidade de advertência
por escrito à infração de natureza leve ou média, passível de ser punida com
multa, não sendo reincidente o infrator, na mesma infração, nos últimos doze
meses, quando a autoridade, considerando o prontuário do infrator, entender
esta providência como mais educativa.
Por ser uma penalidade,
constante do artigo 256, inciso I, do CTB, a advertência somente pode ser
aplicada pela autoridade de trânsito, ou seja, o dirigente máximo de órgão
ou entidade executivo de trânsito ou rodoviário, ou pessoa por ele
expressamente credenciada (Anexo I do CTB), no âmbito de sua circunscrição.
Assim, não é o agente fiscalizador que adverte o motorista, quando da
constatação de uma infração de trânsito. Seu papel é o de levar o fato
observado ao conhecimento da autoridade, para que esta promova a aplicação da
sanção devida. Ao agente, aplica-se o disposto no artigo 280, caput, do
Código: “Ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á
auto de infração, do qual constará...”.
Não há, a exemplo do
que ocorria no Código Nacional de Trânsito de 1966, a figura da advertência
verbal, aplicada de imediato ao infrator. A advertência por escrito deve
ser encaminhada posteriormente ao endereço do proprietário do veículo, da mesma
maneira que ocorreria com o envio da multa, com a única diferença que não será
cobrado, do infrator, o valor pecuniário que seria devido caso a multa fosse
aplicada.
Outro ponto importante
a ser destacado refere-se à pontuação decorrente da infração cometida, que deve
ser incluída normalmente no prontuário do infrator, a fim de possibilitar a
verificação posterior da concessão do “benefício”, bem como a incorporação dos
pontos ao total acumulado no período de 12 meses, para eventual suspensão do
direito de dirigir, se atingidos os 20 pontos. Tal conclusão deve-se à leitura
do artigo 259 do CTB, que, ao estabelecer o total de pontos de cada infração de
trânsito, traz a seguinte redação: “A cada INFRAÇÃO cometida são computados
os seguintes números de pontos...”.
Ainda que seja
possível argumentar que a pontuação não seria devida, por força do artigo 258,
que classifica as infrações em 4 grupos (gravíssima, grave, média e leve),
desde que sejam punidas com multa, tal assertiva não seria lógica, pois
acabaria por invalidar a própria existência da advertência, que depende da
verificação da gravidade da infração, para sua aplicação. Em outras palavras, a
gravidade da infração não depende do tipo de penalidade que lhe é aplicada
(multa ou advertência), mas já se encontra prevista taxativamente em cada uma
das condutas típicas do Código.
Os requisitos
objetivos para imposição da pena mais branda ao infrator, nos termos do artigo
acima transcrito, são dois:
- que a infração seja
de natureza leve ou média (dentre as 243 infrações de trânsito atualmente
previstas no CTB, um total de 81 condutas típicas);
- que não conste, no
prontuário do infrator, uma reincidência específica (na mesma infração), nos
últimos doze meses.
Além destes dois
requisitos, a lei aponta mais uma condição de admissibilidade, que permite
certo grau de subjetividade: a autoridade de trânsito competente deve avaliar o
prontuário do condutor e decidir se aquela providência é mais educativa. Como
exemplo, podemos citar o caso de um condutor que, apesar de não ter cometido a
mesma infração no período analisado, tenha uma grande quantidade de outras
infrações registradas em seu histórico, o que induziria a uma negativa por
parte da autoridade de trânsito.
Feitas estas
considerações, a pergunta que se faz é a seguinte: atendidos os requisitos para
imposição da advertência, a autoridade é OBRIGADA a aplicá-la, em substituição
à multa?
A palavra “poderá”,
com que se inicia o artigo 267, pode levar ao entendimento de que se trata de
uma mera possibilidade, de algo que seja de livre vontade por parte do órgão de
trânsito, o que deve ser analisado com ressalvas, pelas questões a seguir
apontadas.
Entendo,
primeiramente, que o “poderá” indica que não se trata de ato de ofício da
autoridade, ou seja, não deve o órgão de trânsito aplicar, indistintamente, a
advertência por escrito a todos os casos enquadrados no artigo 267, mas deve
analisar sua viabilidade quando provocado. Ainda que seja um aparente benefício
ao infrator, que não precisará desembolsar o valor da multa, penso que se trata
de um direito subjetivo do condutor; há, até mesmo, pessoas que prefiram pagar
o preço de sua conduta infracional (ou proprietários de veículos que queiram
cobrar o valor da infração cometida por terceiro), a receber uma admoestação
por parte do Estado (e é justamente esta a essência da advertência por escrito:
uma forma de “chamar a atenção”, de “puxar as orelhas” do infrator de
trânsito).
Assim, cabe,
efetivamente, ao proprietário do veículo, quando do recebimento da PRIMEIRA
notificação, denominada NOTIFICAÇÃO DA AUTUAÇÃO (nos termos da Resolução do
CONTRAN nº 149/03), ANTES da aplicação da multa e durante o período destinado à
defesa da autuação, solicitar a substituição da sanção pecuniária pela de
advertência, o que deve ser devidamente analisado pela autoridade, que verificará
a gravidade da infração cometida e o histórico de infrações do solicitante.
O requerimento deve,
portanto, ser dirigido à autoridade de trânsito, ANTES de expedida a
notificação da penalidade, não sendo possível, após o recebimento da multa,
solicitar a sua “conversão”, seja em petição ao órgão autuador, seja no
recurso, em 1ª instância, à JARI ou, em 2ª instância, ao CETRAN (ou CONTRANDIFE
ou Colegiado especial, conforme artigo 289 do CTB). Depois de imposta a multa,
perdeu-se o momento oportuno do pedido, pois já se decidiu qual a sanção a ser
aplicada. Os órgãos recursais, além do mais, não têm competência legal para
aplicação de penalidades.
Faz-se necessário,
ainda, analisar até que ponto a Administração pública tem total autonomia em
suas ações. Isto porque, sendo característica do Estado democrático de direito
a tripartição de poderes (consignada expressamente no artigo 2º da Constituição
Federal de 1988), e estando a Administração obrigada ao princípio da legalidade
(artigo 37 da CF/88), resta ao Poder Executivo tão somente colocar em prática a
vontade do legislador, que, na verdade, representa o interesse de toda a Nação.
Há, por isso, pequenas
margens de liberdade ao administrador, que deve estrita obediência ao
mandamento legal. Por esse motivo, é comum encontrarmos, na doutrina de Direito
Administrativo, menção ao poder-dever da Administração pública, no sentido de
que um “poderá” previsto em lei deve ser entendido como “deverá”. Alguns
autores, dentre os quais se destaca o eminente Celso Antônio Bandeira de Mello,
preferem, até mesmo, utilizar a expressão “dever-poder”, enaltecendo o rigor da
obediência à lei e diminuindo o campo de autonomia da vontade, própria do
Direito privado e traço inexistente do Direito público, cujas regras fixam a atuação
da Administração pública como um todo.
Assim, reitera-se o
questionamento: quando houver a solicitação ao órgão de trânsito, de pessoa que
se encontra nas condições do artigo 267, o “poderá” deve ser entendido como
“deverá”? Vejamos, destarte, para maior compreensão sobre o tema, qual é
a natureza jurídica do instituto analisado, sob o enfoque do Direito
administrativo.
A imposição de sanções
administrativas pelo Poder público, como as penalidades de trânsito, ocorre por
meio dos denominados atos administrativos, os quais se classificam, quanto ao
grau de liberdade de escolha, em atos vinculados e atos discricionários, sendo
os vinculados aqueles restritos aos limites da lei e os discricionários os que
comportam uma possibilidade de escolha, dentre as alternativas que a própria
lei prescreve.
A elaboração do auto
de infração, pelo agente de trânsito, é um exemplo de ato administrativo
vinculado, já que o artigo 280 do CTB não oferece nenhuma alternativa, a não
ser a lavratura da autuação. Por outro lado, a imposição da advertência por
escrito, no lugar da multa, exige uma valoração da autoridade responsável, que
deve escolher entre acatar ou rejeitar o pedido do interessado, sendo,
portanto, um ato discricionário.
O ato administrativo
discricionário é, de certa forma, também vinculado, pois deve atender aos
limites legais. Assim como o órgão de trânsito não pode advertir por escrito
quem comete uma infração de natureza grave ou gravíssima, também não pode
deixar de aplicar a sanção mais branda, quando atendidos os requisitos do
artigo 267, sem nenhuma justificativa ou, pior, com a cômoda alegação de que o
sistema de processamento de dados não permite a substituição da multa.
Apesar de o ato
discricionário comportar a possibilidade de escolha, o que determina a validade
da decisão adotada é a sua motivação, sempre obrigatória, para que seja
possível submetê-la à apreciação do próprio administrado e, principalmente, ao
crivo do Poder Judiciário, que exerce, por meio do controle jurisdicional, o
que se denomina de sistema de freios e contra-pesos (checks and balances),
característica que permite, justamente, a harmonia, equilíbrio e controle mútuo
dos três Poderes estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário).
O Prof. Bandeira de
Mello explica este mecanismo de motivação dos atos discricionários como sendo a
“teoria dos motivos determinantes”. Em suma, o correto exercício da
discricionariedade pela Administração pública somente pode ser avaliado se
estiverem mencionados os motivos pelos quais esta ou aquela alternativa foi
escolhida. A partir daí, o ato administrativo discricionário passa a estar
vinculado às razões apresentadas, o que enseja a possibilidade de
questionamento.
Se um condutor, por
exemplo, solicita a advertência por escrito, em substituição à multa, e a
autoridade não atende à solicitação, muito menos justifica sua decisão, como
questionar a validade do ato praticado? A verdade é que, infelizmente, a
advertência por escrito não tem sido aplicada em muitos órgãos de trânsito,
evidenciando uma atuação ineficiente e, por que não dizer, desrespeitosa com o
cidadão, por parte do Poder Público.
Nestes casos, como não
há a possibilidade legal de, em fase recursal, alterar a penalidade aplicada, o
único caminho jurídico possível seria a contestação judicial, via ação
anulatória da multa aplicada pelo órgão de trânsito, o que acaba sendo
inviável, tendo em vista os valores referentes a honorários advocatícios e
custas processuais, que superam o valor da própria multa de trânsito que se
pretende evitar.
Importante salientar,
entretanto, que o servidor que desatender o artigo 267 do CTB poderá,
eventualmente, responder por improbidade administrativa, tendo em vista que um
dos casos de improbidade trazidos pela Lei 8.429/92 consiste na inobservância dos
princípios da Administração pública, entre eles, o da legalidade (artigo 11).
Os órgãos de trânsito
que instituíram mecanismo hábil para o recebimento e processamento das
solicitações encaminhadas pelos interessados estão dando um belo exemplo de
zelo com a atuação estatal, em geral, e com as questões do trânsito, em
particular.
Aos órgãos que, por
outro lado, ainda não se estruturaram adequadamente (apesar do CTB estar em
vigor há onze anos), ficam aqui os esclarecimentos que considero adequados e a
minha opinião, como profissional do trânsito: além do atendimento ao mandamento
legislativo, entendo que a advertência por escrito constitui importante
ferramenta de aproximação com a comunidade, além de demonstrar que, ao
contrário do que alguns motoristas alegam, não está o órgão de trânsito
preocupado apenas com a arrecadação, mas com a mudança de comportamento dos
usuários da via pública.
São Paulo, 05 de
novembro de 2009.
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